Ser Hurbano
quinta-feira, 5 de agosto de 2010
ENCONTRO...
Entrei pelo lado errado da porta. Despejei palavras sem sentido. Fiz perguntas estúpidas, e em alguns momentos respondi a algumas delas. Pedi o doce mais caro, mas não combinei com o café certo. Acendi um cigarro. Procurei um assunto. Procurei palavras bonitas, mas não encontrava. Errei feio no português e logo depois quis sumir. Tirei um sarro de mim mesmo. Sorri de ladinho (Eu sorrio de ladinho quando tímido). Procurei no café quente algum assunto familiar. Peneirei os assuntos familiares. Falei demais sobre alguns deles. Tentei ficar calmo. Enxuguei as mãos na calça jeans. Tentei parecer rico, tentei ser humilde. Arrisquei falar sobre amor. Parei logo em seguida. Retornei ainda mais inseguro. Parei. Fiquei perturbado. Fechei os olhos, e dei uma risada caótica (no banheiro – em frente ao espelho). Voltei e me atrapalhei ao sentar na cadeira. Sentei na cadeira pateticamente. Tocou uma música que eu adoro. Evitei inseri-la no contexto por ama-la demais. Estava Feliz. Estava com medo. Acendi um cigarro. Me engasguei com a fumaça. Meus olhos lacrimejaram, e minha testa ficou vermelha. Meu celular tocou. Era a mãe. Fui carinhoso e bom filho, mas mostrei independência. Falei meus filmes preferidos, e do ultimo cd que estou apaixonado. Tentei não parecer fútil, mas falei sobre futilidades. Tentei não criticar celebridades, terminei falando mal de algumas. Tentei trocar olhares, abaixei meus olhos, envergonhado. Amei livros que nunca li, conheci lugares que eu nunca fui. Menti um pouco, mas não falei meias verdades. Floreei histórias, e me inseri nas melhores. Arranjei guardanapos no balcão, e meu nariz escorreu. Limpei discretamente. Tentei ser engraçado, fui espalhafatoso demais. Acreditei em tudo o que me disse, e acreditei em tudo o que falei. Sorri de ladinho, e fiz um charminho. Fiquei confiante. Decidi parar de fumar, e entrar pra algum esporte. Planejei o domingo que vem, e pensei em desculpas para desmarcar meus compromissos. Não atendi os amigos. Pensei em economizar para uma viagem no final do ano. Em comprar uma cama maior, em alugar dvd´s sábado à noite, em acordar cedo aos domingos. Pensei em parques, cafés e livrarias. Me ofereci para pagar a conta. Dividimos. Voltei pra casa... E... Segunda. Terça. Quarta. Quinta. Sexta. Sábado. Domingo – Cumpri com meus compromissos.
(...)
Namorar é como ler um livro. Acredito. Começo pela escolha: Vou até a livraria e dou uma olhada nas opções. Têm aqueles top´s, os dez mais do mês: Capa dura, alguns nem brasileiros são, são europeus, americanos, russos, japoneses, alguns ainda sem tradução, outros já até saíram em revistas. Bom, confiro a lista, verifico o preço... Está caro... Em Alta. Tudo bem, a vontade é grande, mas vou aguardar sair da moda, ou então esperar aquele amigo antenado ler, e depois me contar se valia a pena. Se valia... Bom, agüentar as conseqüências, quem sabe em um futuro próximo. Agora é a hora de dar uma conferida nos pocket´s, Hum... Alguns títulos antigos, outros profundos demais, outro rasos demais, no meio da bagunça da prateleira, vez ou outra, encontra-se perdido um autor do qual eu já ouvi falar, e me interessei. Deixo ali, guardado, quase escondido, atrás do “Inimigo do povo” de Ibsen. Mais uma volta cultural pelo espaço, a procura de gêneros interessantes, algo que me chame à atenção: Um romance; Uma ficção; Um épico; ou quem sabe até um charmoso livro de poesias. Opa... Uma repaginada no visual daquele livro que eu já li, ou ainda encontro o autor que tanto gosto, que já li muito em outras épocas, mas que quase esqueci, trazendo nesta nova edição uma fase nova da sua prosa. Às vezes tenho essa sorte. Mas pretendo ser categórico, encontrar aquele livro exato, aquele que vai mudar minha vida, ou meu ano, ou pelo menos me distrair nessas férias de verão. Dou de cara com um livro brilhante, enorme, sendo retirado da caixa: “Guinnes Book”. Bom... Esse é daqueles livros pra você dar uma folheada ali mesmo, e perceber como tem gente estranha nesse mundo. Mas só. Poucos aqueles que acabam levando pra casa, geralmente os mais excêntricos. No subsolo alguns títulos podem revelar surpresas. É lá que se escondem os técnicos, pra quem curte uma pesquisa mais aprofundada, quem sabe uma solução pra sua vida profissional, tem os filosóficos que ajudam a restaurar o intelecto, os astrológicos que elevam a alma, e tem até os de reeducação alimentar pra quem acredita estar acima do peso. Não. Ainda não é nada disso. Dou uma pequena paquerada naquele livro grosso de física quântica, mas me lembro que o ultimo livro que eu li já tinha sido complicado demais. Quem sabe quando eu estiver mais maduro eu encaro esse. Títulos coloridos, quase infantis, dançando perto da pilastra, umas tirinhas com tiradas ótimas, e os gibis de super-heróis, mas já passei da fase de acreditar neles, assim como os de contos de fadas, deixo para os mais novos. De volta ao salão principal. Confiro se o livro escondido ainda está por ali, encontro. Alívio. Já um pouco atordoado, penso duas vezes em levar o “KAMA SUTRA”, o livro que os mais esclarecidos afirmam, ser importante pra uma noite de inspiração ou solidão. Penso, mas decido que não, não hoje, hoje saí confiante, hoje saí pra encontraaaaaaaaaaaar (Dou uma olhada em volta)... Achei... Uma edição marroquina. Acho exótico, convido pra sair da prateleira e sentar na poltrona comigo... Vejo o designer da frente, dou uma conferida atrás, e parto pra orelha... Começa bem, um pouco confuso, talvez, mas pode ser um problema da tradução. Gostei. Mesmo assim dou uma repensada. Como estou exigente. Mas é que é uma outra cultura. Sabe como é? E se eu gostar do autor, e ele nunca mais for publicado no Brasil? Peço desculpas, devolvo sem amassa-lo à prateleira, mas com o compromisso de recomenda-lo a um amigo que se interesse pelo tema. Desisto, pergunto onde é o banheiro, e decido ir embora, mas ao chegar a porta me recordo do pequeno livro escondido, solitário, frágil, e até barato, mas completamente disponível para ser lido, que espera ansioso por um bom leitor, acho sacanagem deixar esperando, volto a sessão, e procuro um lugar para posiciona-lo estrategicamente para que alguém possa se interessar por ele. Acredito que ele merece. A curiosidade é tanta que como quem faz uma pergunta abro para ler uma página, e ele como quem me responde se deixa ser lido: “Não me apareça tarde, pois a noite foi feita para dormir”. TENHO CERTEZA, agarro, ainda que envergonhado. Na fila do caixa, encontro às revistas de fofocas, e os best-sellers Hollywoodianos. Abraço o livro mais forte me desculpando por quase te-lo desprezado, com a segurança de ter encontrado na simplicidade a poesia que me fazia falta.
Chego em casa. Arrumo a sala, acendo o abajur, coloco Billie Holliday no aparelho de som (nessas horas o ideal seria uma vitrola), e começo a desnuda-lo, primeiro dou uma lida no histórico de vida, gosto de saber as referencias, logo depois parto para o prefácio, é importante (mas nem sempre) saber o que os outros falam dele. Leio o primeiro capítulo, são tantas informações e personagens em sua história, que às vezes releio duas vezes o mesmo parágrafo. Paro. Gosto de ir lendo aos poucos. Existe quem goste de ler o livro em uma sentada para depois já abandona-lo na estante enquanto procura outro, quanto a mim, prefiro um relacionamento mais duradouro, nem que signifique ficar ansioso pelo próximo capítulo. E assim começa a leitura que parece não ter fim, às vezes madrugadas incansáveis, noites de insônia, mas em dias de muita agitação basta ler duas frases que já caio no sono. Começo a não precisar mais parar a leitura e fazer um esforço para lembrar sobre aquele personagem que já havia sido citado, às vezes um personagem novo entra na trama, um personagem do trabalho, ou mesmo da família, simpatizo com alguns, outros aturo por estar gostando tanto do livro, mas nunca deixo transparecer. Durante um tempo leio todos os dias, depois com o ritmo intenso da vida passo a procura-lo nos finais de semana, sempre tomando cuidado pra não me perder na narrativa, se for necessário volto umas páginas pra retomar o rumo. Se alguma coisa está me chateando, um sorriso aparece logo quando me lembro que ele me espera em casa. O Cd da Billie Holliday começa a atrapalhar, preciso ficar em silêncio para ouvir a respiração das frases, e não me incomodo com os desabafos escritos, mesmo que isso torne chata aquela passagem, pois acredito na revira volta. Delicio-me com os ápices, e me revolto com as quebras da dinâmica. De vez em quando passo em frente à livraria e me excito com os novos títulos da vitrine, mas permaneço fiel, dessa vez quero ir até o fim. A proximidade já é grande, quantas vezes não estive com ele na intimidade fria do banheiro, mas sempre mantendo o respeito, não deixo molhar, e nunca esqueci no revisteiro. Agora percebo que as páginas estão acabando, evito tentar antecipar o final, faço um esforço pra não contar as páginas que faltam, deixo acontecer. A tristeza salta em meu peito, quando percebo que o livro já está cheio de minhas marcas, impregnado de meu cheiro, a capa preta que antes era brilhante, agora está opaca, repleta de minhas impressões digitais. Os meus amigos já começam a me perguntar se pretendo um dia repassa-lo. No final com a simplicidade de um sábio, retiro o marcador e junto a capa com a contracapa, percebo que suas páginas já não estão tão grossas e brancas, mas ainda se parece com o livro que um dia em conheci. Arrumo seu lugar na estante, junto àqueles outros que escolhi para minha biblioteca, só os mais importantes, os que não foram parar em um sebo empoeirado. Às vezes à noite, ainda retiro ele para relembrar as frases que eu grifei. Procuro nele alguma frase de impacto que me martela a cabeça, não encontro, já nem sei mais o que dele ficou escrito em mim. E sua história como em uma delicada relação vai perdendo as formas, se transformando em palavras, puras, plenas, repletas de significados, palavras isolada, palavras de um bom amigo...
Chego em casa. Arrumo a sala, acendo o abajur, coloco Billie Holliday no aparelho de som (nessas horas o ideal seria uma vitrola), e começo a desnuda-lo, primeiro dou uma lida no histórico de vida, gosto de saber as referencias, logo depois parto para o prefácio, é importante (mas nem sempre) saber o que os outros falam dele. Leio o primeiro capítulo, são tantas informações e personagens em sua história, que às vezes releio duas vezes o mesmo parágrafo. Paro. Gosto de ir lendo aos poucos. Existe quem goste de ler o livro em uma sentada para depois já abandona-lo na estante enquanto procura outro, quanto a mim, prefiro um relacionamento mais duradouro, nem que signifique ficar ansioso pelo próximo capítulo. E assim começa a leitura que parece não ter fim, às vezes madrugadas incansáveis, noites de insônia, mas em dias de muita agitação basta ler duas frases que já caio no sono. Começo a não precisar mais parar a leitura e fazer um esforço para lembrar sobre aquele personagem que já havia sido citado, às vezes um personagem novo entra na trama, um personagem do trabalho, ou mesmo da família, simpatizo com alguns, outros aturo por estar gostando tanto do livro, mas nunca deixo transparecer. Durante um tempo leio todos os dias, depois com o ritmo intenso da vida passo a procura-lo nos finais de semana, sempre tomando cuidado pra não me perder na narrativa, se for necessário volto umas páginas pra retomar o rumo. Se alguma coisa está me chateando, um sorriso aparece logo quando me lembro que ele me espera em casa. O Cd da Billie Holliday começa a atrapalhar, preciso ficar em silêncio para ouvir a respiração das frases, e não me incomodo com os desabafos escritos, mesmo que isso torne chata aquela passagem, pois acredito na revira volta. Delicio-me com os ápices, e me revolto com as quebras da dinâmica. De vez em quando passo em frente à livraria e me excito com os novos títulos da vitrine, mas permaneço fiel, dessa vez quero ir até o fim. A proximidade já é grande, quantas vezes não estive com ele na intimidade fria do banheiro, mas sempre mantendo o respeito, não deixo molhar, e nunca esqueci no revisteiro. Agora percebo que as páginas estão acabando, evito tentar antecipar o final, faço um esforço pra não contar as páginas que faltam, deixo acontecer. A tristeza salta em meu peito, quando percebo que o livro já está cheio de minhas marcas, impregnado de meu cheiro, a capa preta que antes era brilhante, agora está opaca, repleta de minhas impressões digitais. Os meus amigos já começam a me perguntar se pretendo um dia repassa-lo. No final com a simplicidade de um sábio, retiro o marcador e junto a capa com a contracapa, percebo que suas páginas já não estão tão grossas e brancas, mas ainda se parece com o livro que um dia em conheci. Arrumo seu lugar na estante, junto àqueles outros que escolhi para minha biblioteca, só os mais importantes, os que não foram parar em um sebo empoeirado. Às vezes à noite, ainda retiro ele para relembrar as frases que eu grifei. Procuro nele alguma frase de impacto que me martela a cabeça, não encontro, já nem sei mais o que dele ficou escrito em mim. E sua história como em uma delicada relação vai perdendo as formas, se transformando em palavras, puras, plenas, repletas de significados, palavras isolada, palavras de um bom amigo...
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
DE VOLTA PRA CASA
Em frente à pacata porta de madeira no interior do Brasil, eles se despedem. A mala dele, bem comprada em uma grande loja de departamentos, contrasta com o pano de prato surrado em fios desfiados, amarrado na cintura de sua mãe. Seu pai contém um choro impregnado na retina, que insiste em não deixar escorrer pelos cantos velhos e enrugados de sol, de seus olhos. Sua mãe o abraça como se fosse perdê-lo mais dia ou menos dia, na certeza de que, na verdade, ela é quem irá partir. A mala agora cuidadosamente armazenada para que não arranhe seus trincos de metal polido, na pick up velha e surrada de barro de seu pai. A mãe como todas as mães, pediu para que ele se cuidasse, para que não demorasse tanto para voltar da próxima vez. Ele reclamou da distância, dos preços das passagens, e disse que faria o possível para estar de volta no natal. Mesmo sabendo, ambos, que essa era uma mentira deslavada, a mãe deu-lhe um beijo na testa, um beijo demorado, cheio da paixão e da culpa que todas as mães sentem.
Na pick up enlameada, o silêncio entre eles era acalentado pela dupla sertaneja que se esgoelava na rádio. A música inspirava lábios amorosos, para que pronunciasse sem dor frases fraternas, mas eles sabiam que isso não era pra eles, que não foram criados assim, que dentro deles havia tanta dor e arrependimento, de que as surras de um não foram cicatrizadas, e as palavras de desprezo do outro não foram esquecidas. Mas que todos os abraços que já se abraçaram eram o suficiente para explodir da boca a palavra PAI sempre acompanhada dos dizeres MEU FILHO. E se amavam assim.
Na rodoviária velha da cidade, se abraçaram com volúpia, como duas peças de um brinquedo de montar, como se há anos tivessem treinado aquele abraço. Por fim se afastaram ambos, com a certeza de que nunca um “eu te amo” seria capaz de expressar a perfeita genética de seus encaixes. Aquele olhar marejado e brilhante de seu pai jamais sairia de seus pensamentos. O Pai pediu também para que não demorasse tanto para voltar da próxima vez: - “Ao menos pela sua mãe, que está tão doente”. Ele disse que faria o possível para estar de volta no natal. Mesmo sabendo, ambos, que essa era uma mentira deslavada, quiseram acreditar.
Na solidão de seus bancos de viagem, de volta para casa, deixaram transbordar aquela gota de lágrima cheia de saudade e angústia, que só quem amou e odiou intensamente sua família, seria capaz de deixar transbordar.
Na noite do dia seguinte, chegando em casa, exausto e morto da viagem de trinta horas, olhou para os prédios da capital, como um lobo olha fascinado pela lua, e ascendeu-se a vontade de ir para rua, era Sábado. A caixa de mensagens do celular abarrotada de convites e Vips, para onde quer que fosse. A mala depois de limpa começou a vomitar seus pertences para dentro de uma prateleira do armário quase intocada: Calças, blusas, sapatos, bermudas, e até uma botina comprada especialmente para a ocasião da viagem, em nada combinavam com as prateleiras vizinhas. De dentro do armário, contornou na cintura com algo que parecia um coldre de lantejoulas, vestiu a camiseta de gola V, e deixou deslizar pelas suas pernas sem pêlo, herança de sua mãe polaca, uma bermuda cavada, que indecentemente escapava uma lasca da polpa de sua bunda. Este era seu figurino para aquela noite quente de sábado. Foi até o espelho, armado das melhores maquiagens, para tentar livrar-se do que o mês de mato fez com a sua cara. No rosto uma barba rala que há muito tempo não crescia ali naquele solo infértil, envenenado de cosméticos. Achou-se parecido com seu pai... Resolveu deixar as costeletas.
Na pick up enlameada, o silêncio entre eles era acalentado pela dupla sertaneja que se esgoelava na rádio. A música inspirava lábios amorosos, para que pronunciasse sem dor frases fraternas, mas eles sabiam que isso não era pra eles, que não foram criados assim, que dentro deles havia tanta dor e arrependimento, de que as surras de um não foram cicatrizadas, e as palavras de desprezo do outro não foram esquecidas. Mas que todos os abraços que já se abraçaram eram o suficiente para explodir da boca a palavra PAI sempre acompanhada dos dizeres MEU FILHO. E se amavam assim.
Na rodoviária velha da cidade, se abraçaram com volúpia, como duas peças de um brinquedo de montar, como se há anos tivessem treinado aquele abraço. Por fim se afastaram ambos, com a certeza de que nunca um “eu te amo” seria capaz de expressar a perfeita genética de seus encaixes. Aquele olhar marejado e brilhante de seu pai jamais sairia de seus pensamentos. O Pai pediu também para que não demorasse tanto para voltar da próxima vez: - “Ao menos pela sua mãe, que está tão doente”. Ele disse que faria o possível para estar de volta no natal. Mesmo sabendo, ambos, que essa era uma mentira deslavada, quiseram acreditar.
Na solidão de seus bancos de viagem, de volta para casa, deixaram transbordar aquela gota de lágrima cheia de saudade e angústia, que só quem amou e odiou intensamente sua família, seria capaz de deixar transbordar.
Na noite do dia seguinte, chegando em casa, exausto e morto da viagem de trinta horas, olhou para os prédios da capital, como um lobo olha fascinado pela lua, e ascendeu-se a vontade de ir para rua, era Sábado. A caixa de mensagens do celular abarrotada de convites e Vips, para onde quer que fosse. A mala depois de limpa começou a vomitar seus pertences para dentro de uma prateleira do armário quase intocada: Calças, blusas, sapatos, bermudas, e até uma botina comprada especialmente para a ocasião da viagem, em nada combinavam com as prateleiras vizinhas. De dentro do armário, contornou na cintura com algo que parecia um coldre de lantejoulas, vestiu a camiseta de gola V, e deixou deslizar pelas suas pernas sem pêlo, herança de sua mãe polaca, uma bermuda cavada, que indecentemente escapava uma lasca da polpa de sua bunda. Este era seu figurino para aquela noite quente de sábado. Foi até o espelho, armado das melhores maquiagens, para tentar livrar-se do que o mês de mato fez com a sua cara. No rosto uma barba rala que há muito tempo não crescia ali naquele solo infértil, envenenado de cosméticos. Achou-se parecido com seu pai... Resolveu deixar as costeletas.
DIA de FOLGA
Eles partem juntos, partem apressadamente, estão atrasados como sempre. O primeiro vai correndo na frente e pela beirada da rua “– A calçada anda cheia demais de pedestres e pombos”. O sapato preto de solado amadeirado pisa acascalhando o cimento granulado. PLÉC, o som agudo sai do sapato apertado. Das laterais do sapato, empurrada pela solas das meias sociais e escorregadias, a fumaça do talco verte como um chafariz, contornando o couro do calçado. PLÉC, o ruído agudo do outro sapato alguns milésimos de segundos depois. Os pés sobrevoando a rua. Na mão, a pasta. Na pasta o vazio deixado pelo relatório de finanças esquecido na impressora, que alías estava sem tinta. BUZINAS... Atrás, correndo desesperadamente, sua sombra, que tenta alcançá-lo a qualquer preço. Às vezes sumindo e ressurgindo em uma virada de esquina, no áspero muro bege da Santa Casa. Ela sempre atrás, e se fosse possível esticaria as mãos para segurá-lo no colarinho, enforcando-o: Um suplício para que se acalme! Arrastada! Por vezes tropeçando em calçadas rebaixadas, ou sendo acertada em cheio no estômago por um buraco na parede. Como se amarassem cruelmente seus pés ao escapamento de um carro em alta velocidade. Na porta do escritório ela arfando enquanto ele seca com a manga do paletó as gotas de suor que escorrem por suas entradas de cabelo que em breve encontrarão uma saída, conferindo discretamente o desodorante. Todo o resto do dia acontece junto a uma chamada de atenção pela falta do relatório que ele jura ter imprimido na noite anterior, mas que no fundo não tinha certeza. À noite exaustos, voltam juntos cambaleando pela calçada, a sombra descansando nos intervalos da falta de iluminação pública do bairro distante em que ele morava. Em casa o relatório de finanças cuspido pela impressora “- Não estava louco. Ainda!!!”. Cai acolchoadamente no colchão duro e velho que tinha desde o tempo da faculdade, há dez anos. Logo após fechar os olhos, abre os olhos, e vê no relógio às seis e meia de mais um dia de trabalho que começa às seis e meia. ACORDA. Pega a cueca que lavou no banho e pendurou atrás da geladeira, ainda úmida, e coloca pra esquentar no micro-ondas junto ao copo de leite com café solúvel. Enquanto espera os dois minutos do cronômetro, lê rapidamente no jornal a notícia, de que a crise pegou uma nova gripe no maior evento de moda do país, enquanto no último capítulo da novela a cotação do dólar procura uma jovem de seios firmes. Re-Ensaca o jornal meticulosamente folheado e devolve ao respectivo dono do apartamento da frente, adorava, mesmo assim, ser honesto. Da cozinha ouve os três apitos do micro-ondas. Calça a cueca pelando em vapor, e toma o café com leite ainda um pouco morno, ao mesmo tempo em que veste a camisa, e faz o nó da gravata, e coloca a calça por cima da cueca pelando, e termina o pingado morno, e dá uma breve olhada ao redor da kitinete que lhe parece, ter a capacidade de se bagunçar sozinha. Respira… Sapatos. Talco. Meias. Procura a chave, acha a chave, abre a porta, e tranca a porta. Voa apressado pela escada, pensando em um jeito de desafiar o tempo e correr o suficiente para chegar ao trabalho há dez minutos atrás. ACORDA. Olha em volta e está sozinha, quase apagada pela luz do meio dia que entra queimando pela janela. Esquecida, espreguiça-se com todo o direito. Vai até o banheiro que é o único cômodo separado do restante da kitinet, e não o encontra. Sentindo uma coceira ardida por causa do desgrudamento, liga o chuveiro e se refresca com os pingos gelados de água que transpassam o seu contorno. Enquanto lava a cabeça faz planos para aquela quinta feira ensolarada. Cansada de viver as suas sombras, sem pressa, tiraria aquele dia para repensar a vida e tomar um café da tarde até sumir ao pôr do sol.
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